ARREBOL QUADRADO, capítulo 2: Valsinha.

Há sempre um ônus a pagar pelo trabalho artístico: pobreza, embriaguez, loucura, escárnio, solidão, violência, fracasso. Às vezes todos eles juntos. Para um escritor do feitio de Azevedo Diniz, seria obsceno viver do que escrevia. Cada bar da cidade estava apinhado de jornalistas prostituídos por miséria, a contar moedas para pegar a conta. Azevedo Diniz assistia com desdém. Mesmo que os colegas lhe zombassem por isso, preferia trabalhar todo dia, de segunda a sábado, no escritório de advocacia Epifânio & Cavalcanti, capitaneada pelos doutores dos respectivos sobrenome. Passava suas tardes sentado em um escritório escuro, e nem o café lhe impedia de cochilar com a pena na mão, em meio da redação dessas nadarias burocráticas que permitiam a sociedade funcionar em sua ordem irracional e eficaz. Copiava documentos e escrevia correspondências com sua caligrafia mecanizada, que não era feia nem bonita, simplesmente legível.

Não era um trabalho difícil. Para falar a verdade, a despeito de semblante melancólico e do comportamento sorumbático que eram característicos dos escriturários, a vida que Azevedo Diniz levava era bastante razoável. Simplesmente sentado em sua cadeira, redigindo seus documentos. Depois, era só aguardar que um dos seus chefes, Dr. Cavalcanti, fosse até sua sala. Pegava o lampião da mesa de Azevedo Diniz – a sala em que Azevedo Diniz era num compartimento mal iluminado instalado no porão -, examinava a cópia por dois ou três segundos com a ajuda do seu pince-nez, e dizia, monotonamente:

— Parece estar bem, Azevedo Diniz, parece estar bem.

Azevedo Diniz recebia o papel com indiferença mas por dentro estava dividido entre a vontade de se matar e a vontade de matar o pai, desde aquele jantar de merda. Foi porque a mãe não parava de mandar cartas. Por ele, nunca mais colocaria os pés naquele lugar. Seu pai lhe expulsou de casa sem nem pensar duas vezes. Que nem um cachorro velho. Azevedo Diniz ainda lembrava daquela cena, e lembrava melhor ainda dos chutes dados em sua costela. A mãe gritou para que parasse, e ele pisou no filho ainda duas vezes antes de perceber que o vizinho saíra de casa para ver o que se passava. Quando chutava o filho caído no chão, parecia estar tomado por um diabo. Quando o vizinho abriu a porta e botou a cabeça para fora, o pai passou a mão na nunca, como se estivesse envergonhado.

— Está tudo bem aqui, explicou, e deu tchauzinho para o vizinho, que achou melhor entrar e fechar a porta. Azevedo Diniz, caído ao chão, pegou os pertences que deixou cair: um caderno em que escrevia suas poesias, seu pince-nez, pilhas de documentos do trabalho, uma embalagem de cigarro, um isqueiro, uma garrafa com cachaça. A mãe ficou parada, olhando, morrendo de vontade de chorar, mas se contendo.

— Filho, venha aqui…, pediu, e esticou a mão para ele, sem se mover do seu lugar. Azevedo Diniz somente guardou tudo na maleta, se levantou e, mancando, foi embora tomar o bonde para sua pensão. Teve que tolerar o olhar indelicado das pessoas diante de lábio sangrando e o olho roxo. Um policial lhe parou assim que desceu do bonde:

— Ei, ei, que foi isso?, e já foi empurrando Azevedo Diniz contra a parede, dizendo que estava detido. Azevedo Diniz colocou a mão na cabeça e esperou o policial revistá-lo em todos os lugares possíveis. Depois, verificou a maleta com muito cuidado. Constatando que não havia nada que justificasse a detenção, pediu para verificar os registros de Azevedo Diniz.

— Tudo certo, disse, em tom desconfiado, e devolveu a carteira para ele.

Bem perto dali, dentro de uma sala escura, iluminada por uma lâmpada na mesa do centro, e por uma vela diante da imagem da Virgem disposta em um altarzinho na parede, a Senhora Baruch tricotava. Seus olhos vidrados sequer percebiam o que as mãos faziam. Era necessário fazer alguma coisa com elas, ou então elas tremeriam, arranhariam suas coxas, arrancariam fios de cabelo. Ao invés disso, contudo, bem disciplinadas por anos de prática, as mãos tricotavam, às vezes meias delicadas, outras vezes longos vestidos, que depois dava para a filhinha da criada.

Já era tarde da noite, ela ainda não tinha ido dormir. Lola desceu até a sala e perguntou o que a mãe fazia acordada. Enquanto costurava, olhando o nada, a angústia de Senhora Baruch passava despercebida para qualquer um. Até mesmo para ela própria, que respondeu:

— Estou sem sono, disse, e logo se calou. Lola olhou pros olhos da mãe e por um segundo cogitou haver alguma coisa de errado naquela situação; pressentiu as perturbações que agitavam a alma da mãe, mas a verdade é que não tinha nada com isso, tinha suas coisas para resolver. Havia se levantado para pegar o copo d’água que sempre tomava antes de dormir. Não iria perder tempo com os problemas que tiravam o sono de sua mãe. Apressada, foi então até a cozinha e encheu o copo com a água fresquinha do jarro de barro. Passou novamente pela mãe, ainda a tricotar, feito um zumbi. Subiu para seu aposento, no segundo andar. Lá, abriu a grande janela que dava acesso à varanda e ficou assistindo a rua. Nenhuma janela estava iluminada. A névoa pairava sobre a madrugada, seus rolos espumosos impedindo que se enxergasse muito longe. Um coche atravessava a rua, vagaroso, para logo desaparecer. As ruas então ficaram vazias, e se não fosse o alarido dos insetos, diria-se não haver viv’alma.

Já havia bebido a última gota d’água e estava prestes de entrar quando ouviu um ruído.

— Psiu, alguém sussurrou, de dentro da noite. O primeiro instinto de Lola foi de entrar em seu quarto. Chegou a dar alguns passos e colocar a mão na porta, prestes a fechá-la, mas alguma força conteve seu movimento. Ficou alguns segundos nessa pose, imóvel, as mãos paralisadas, rebeldes ao instinto de se resguardar.

— Psiu, repetiu, e nesse ponto, as mãos de Lola começaram a tremer. Lentamente, soltou a porta. Abandonou a ideia de se esconder, seja lá do que fosse. Tinha dezessete anos de idade e não estava prometida para nenhum rapaz. Não que faltassem candidatos. Nas refeições e bailes promovidos pela família, ao seu redor se apinhavam rapazes. Papai, contudo, não lhe deixava namorar nenhum. Sempre se aproximava, falando de qualquer amenidade, mas munido de inconfundível olhar feroz. Mamãe já havia discutido com ele que a filha já perigava de passar da idade propícia para noivar. “Vinte anos e não casar fica feio”, argumentava, mas o pai era impassível. “Ainda tem mais de dois anos”, replicava. Antes de deitar, esfregando a virilha na quina da cama, Lola tinha que se aliviar, toda noite, para conseguir dormir sem sofrer de terríveis pesadelos. Quando ouvia a criada fechar a porta de quartinho, esperava ainda cerca de meia hora ainda, para certificar-se de que ninguém abriria a porta por qualquer motivo inesperado. E porque toda segurança é ainda pouco remédio, já vestida em sua camisola, descia até a cozinha para pegar um copo d’água. Verificava que a casa já estava dormindo e, depois de fechar a porta à chave, bebia seu copo d’água, tentando controlar a vontade. Então fechava a varanda, tirava a calcinha e, sobre a quina amadeirada de sua cama de solteira, esfregava a vulva. Primeiro devagar, mas conforme começava a sentir escorrer, acelerava, em movimentos calculados para lhe provocar o êxtase do orgasmo em menos de dez minutos.

Quando Thomas Plínio viu aquela moça na varada, iluminada pela lâmpada fraca do poste diante da casa, seus olhos de coiote procuraram de imediato os ombros, gentilmente decotados, com aquela ossatura delicada à mostra. Bebia um copo d’água como um beija-flor tomaria o néctar de uma flor. A imaginação de Thomas Plínio se acendeu. “”Uma criatura divina”, pensou, deliciado.

Thomas Plínio era o filho mais novo de uma família. Seu pai, o capitalista Jean Plínio, fez fortuna na imprensa e se casou com Dona Ivete Hollanda, uma moça nem feia nem bonita, mas que vivia das rendas deixada pelo pai, que foi um respeitado latifundiário da região. Dos seus cinco filhos, coube a Thomas Plínio de se tornar padre para realizar o sonho da avó, falecida duas semanas antes do nascimento do menino. Jean Plínio era francamente desinteressado dos assuntos da espiritualidade; era homem prático, e o máximo de abstração que sua mente comportava era a soma e a subtração. Sua esposa, Dona Ivete Hollanda, ia na igreja, menos para rezar do que por não ter mais o que fazer. Não se importaria, contudo, de honrar o desejo da mãe, se ele não aparecesse nos requisitos para a aquisição de uma importante herança. No dia do nascimento de Jean Plínio, quando o pai e a mãe estavam no quarto, o advogado Mandrake bateu na porta. Trazia uma pasta em que estava a cláusula que instituía a entrega da herança para o exato dia que Thomas Plínio fosse ordenado.

— Vocês ainda vão efeminar esse menino com tanta empiriquitação, dizia o pai, contrafeito com a educação regrada que davam ao futuro padre. De Thomas Plínio ninguém tinha notícia de qualquer malcriação. Não podia brincar junto dos moleques na rua. Nenhuma briga na saída do colégio, nenhum trote, nenhum tiro em passarinho, nenhum gato da vizinhança com olho decepado, nada. A esposa, contudo, lhe lembrava da herança, e o marido ficava de bico fechado. Melhor um filho maricas do que perder o tesouro da velha, pensava em seu íntimo.

Foi quando Thomas Plínio completou dezoito anos que, sem que a mãe pudesse entender os motivos, passou da água para o vinho. Estava saindo da missa de páscoa. Era o segundo ano do seminário do filho, e ele disse que não poderia ver a família porque ficaria em retiro. No entanto, um vizinho flagrou Thomas Plínio de pileque. Na província o mexerico corre mais rápido que cavalo puro sangue. Todo mundo ficou sabendo. Dona Ivete Hollanda morreu de vergonha. Jean Plínio, que apesar do semblante severo, em seu íntimo ficou feliz de saber. Com o tempo, novas histórias surgiam. O garoto, quando convocado pela família, negava tudo, claro, mas a mãe percebia no seu olhar algo diferente. Não era o mesmo de antes. Aquele que estava dela não era seu filho. Naquele rosto, estava não o Thomas Plínio que fora tão zelosa na criação, mas um cínico. “O que aconteceu com meu menino?”, pensava Dona Ivete Hollanda, incrédula.

Há quase dois anos, Thomas Plínio acenava para seus pais e tomava o bonde, imaginando que o seminário seria uma continuação da vida tediosa que levava desde sempre. Tudo era monótono, acreditava, porque era assim que tudo fora criado para ser. Ao viver entre os seminaristas, muitos deles sem qualquer vocação para a carreira, e que somente seguiam, contrafeitos, as ordens dos pais, descobriu que a vida possuía outras tonalidades. Passou a beber. Junto dos amigos, saía para aventuras noturnas. Em um bordel do centro da cidade, Thomas Plínio conheceu uma mulher pela primeira vez. Passou a ler novos jornais, conheceu novas opiniões. Seu vestuário se afrancesou. Quando Lola lhe viu, acenando lá de baixo, distinguiu aquele mesmo bigode recurvado que do rapaz de depois da missa. Em seus lábios, distinguiu um sorriso convidativo. A garoa que começara a cair refrescava a noite. Ela sorriu, mordeu a ponta da língua e, tímida, deu tchauzinho. Ele fez um gesto com a mão chamando Lola para vir com ele, e depois começou a dançar valsa de troça, fazendo ar solene. Ela riu e escondeu a boca com a mão.

Lola olhou para dentro, receosa, mas quando olhou para Thomas Plínio mais uma vez e viu aquele sorrisinho, e sentiu sua barriga arder de vontade, descobriu que não teria forças para recusar o convite. Fez com a mão para que esperasse; ele fez que ok. Fechou a janela e passou a se vestir. Colocou um vestido que sabia ficar bem nela. Escolheu seus sapatos e passou a se maquiar. Diante do espelho, vestindo seu colar de pérolas ao longo do pescoço, imaginava-se a caminho de um baile escuro. A lua entraria pelas janelas coroadas de cortinas púrpuras. Cheiro de cigarro e incenso se misturavam. Em cima de um palco baixo, uma banda de negros tocaria uma polca elétrica, contagiante. Lola estava junto do estranho da janela, que nem viu direito, mas que em sua cabeça era de porte viril e trejeitos cavalheirescos. Um exímio dançarino, de olhar confiante. Com uma mão, Thomas Plínio segurava a dela. Com a outra, maliciosamente apertada na polpa das costas, ao ponto de incomodá-la. O chão grudava por conta da cerveja derramada. Os dois dançavam, entre a multidão de dançarinos, aqueles acordes rápidos da viola, a harmonia hipnótica do clarinete, os golpes sincopados disferidos no piano, o swing discreto do contrabaixo.

A demora para vestir o colar foi longa; era Dona Branca que costumava fazer esse tipo de coisa para ela. Já estava começando a se irritar por não conseguir fechar sozinha a presilha do colar, quando enfim ouviu o click do fecho.

Foi nesse exato instante, lembrou de sua mãe, sentada na sala, acordada, tricotando. Todo o encanto de seu rosto murchou.

Enquanto isso, Thomas Plínio estava na esquina, impaciente, aguardando encostado num muro. Cantarolava e tamborilava o pé no compasso de uma valsinha que na época fazia sucesso pela cidade.

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