Notas sobre o Maestro Bernstein, o Maestro Mahler e o espírito de contradição

1) Maestro Leonard Bernstein (ou Lenny para os íntimos)

É surpreendente: a revista Time, que normalmente acompanha o nível intelectual médio dos eleitores de Biden e Trump, publicou uma resenha de grande sofisticação sobre o filme Maestro, lançado em dezembro de 2023. Não que a resenha mergulhe fundo em assuntos musicais – aliás, quem assiste ao filme não aprende nada sobre as correntes artísticas do século XX, nada sobre a relação de Leonard Bernstein (1918-1990) com Mahler ou Beethoven ou Gershwin. Mas o resenhista apresenta com sutileza as idas e vindas da trama, o que é dito e o que não é dito sobre a vida de Lenny, tanto a pública quanto a privada e sobretudo sexual/amorosa. Antes de passarmos a esse ponto forte do filme, vejamos brevemente uma explicação relativamente comum sobre a vida privada de Bernstein, um veredito que se ouviu por aí nos últimos anos: viado enrustido, precisou se casar com uma mulher para ter a fachada respeitável que se exigia de um maestro em meados do século XX. Essa explicação simplória combina com muitos clichês dentro e fora do meio LGBT: “bi nem existe”, “é só uma fase”, etc. Não que eu ou o roteiro do filme estejamos encaixando definitivamente Lenny na gaveta “bissexual”. O que o filme faz é não enquadrar a sexualidade nem neste nem em qualquer outro rótulo.

Como aponta a resenha na Time, boa parte da construção narrativa do filme depende do que não é dito. Em mais de um momento, há comentários sobre os múltiplos talentos e atuações profissionais de Bernstein – como compositor e maestro, regendo densas sinfonias de Beethoven e Mahler, criando suas próprias sinfonias mas também produzindo musicais da Broadway – e esses comentários acabam tendo um duplo sentido em um filme que mostra a sua agitada e também múltipla vida amorosa. Mas o duplo sentido é só implícito. Quando um entrevistador na TV comenta que Lenny é difícil de classificar, ele concorda e ainda faz uma piada de autodepreciação: “And if you carry around both personalities, I suppose that means you become a schizophrenic and that’s the end of it.”

“O casamento de Leonard e Felicia”, prossegue a Time, “durou de 1951 até a morte dela por câncer em 1978, e no entanto a ausência de rótulos no filme parece extremamente contemporânea com nossos dias. Bernstein fez sexo com homens e mulheres, mas sua sexualidade nunca recebe um nome específico no filme. Nem os termos combinados com Felicia – ela está claramente ciente dos casos com homens, mas o quanto isso é OK para ela é algo sugerido em vez de explicitamente afirmado. Em uma cena, ela diz: ‘eu sempre soube quem ele é’, mas a audiência do filme sabe apenas de alguns flashes.”

O filme – conclui o resenhista da Time – ilustra os aspectos misteriosos da sexualidade: mesmo em uma relação não-monogâmica combinada os participantes podem não saber explicar tudo a partir das regras acordadas. Em todo caso, contrariando a ideia do casamento apenas de fachada – explicação preferida pelos fofoqueiros de ontem e hoje – o editor do livro The Bernstein Letters, Nigel Simeone, escreve que Felicia “foi sem dúvida o maior amor de sua vida (resenha da Time aqui).

Até aqui, falamos só de vida conjugal, não-monogamia, passando ao largo da carreira de uma das figuras mais carismáticas da música de concerto do século XX. É porque o filme também mostra a música orquestral bem de longe: ainda que Bradley Cooper tenha uma boa atuação, ele ainda passa longe do carisma de Bernstein e da sua capacidade descomunal para explicar com palavras simples temas espinhosos como a música atonal ou detalhes de orquestração que fazem Debussy soar como ninguém além de Debussy e Beethoven soar como ninguém além de Beethoven.

Para quem se interessar por esse lado de Bernstein como professor, por sua capacidade de falar na televisão de forma simples, apaixonada e ao mesmo tempo sem estupidificar o público, há muita coisa no Youtube, é claro… Por exemplo, na sua aula televisiva na série Young People’s Concerts, em 1969, ele compara a Sinfonia Fantástica (1830) de Hector Berlioz com os Beatles: o charme de Bernstein, além do seu conhecimento tanto sobre Berlioz como sobre a fase psicodélica dos Beatles, permite que essa analogia não se torne ridícula como se tornaria na boca de alguém menos habilidoso (aqui no Youtube e o texto desta aula está aqui).

E, em Harvard, na sua aula filmada de duas horas sobre a “crise [musical] do século 20” – spoiler: a crise é a explosão da linguagem tonal – ele passa por Ravel, Ives, Mahler e, no meio disso tudo, aborda longamente a complexa técnica dodecafônica de Schoenberg e Berg, tudo isso com palavras quase sempre simples. E aos 50m40s (aqui no Youtube), ainda falando sobre Schoenberg, Bernstein passa por um dos seus temas preferidos, a contradição como marca de qualquer arte ou ideia minimamente interessante: “that’s what I mean by ‘the greatest thinkers in the world, they’re always contradicting themselves…’ “ [“é isso que eu quero dizer quando digo que os grandes pensadores do mundo estão sempre se contradizendo…”] .

Vejamos então como esse conceito que boa parte da tradição filosófica condena e apedreja, a contradição, aparece na obra de Gustav Mahler, compositor da virada do século XIX para o XX, que aliás foi um dos mais gravados na carreira discográfica de Bernstein (aqui, aqui e aqui por exemplo). No filme Maestro, a 2ª Sinfonia de Mahler aparece em uma longa cena gravada com orquestra em uma catedral inglesa. Há quem diga que Bernstein nasceu para reger Mahler.1

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2) Maestro Gustav Mahler

Nascido em 1860 e falecido em 1911, o austríaco Gustav Mahler é hoje lembrado como um dos principais compositores da sua época, mas quando vivo, sua fama era sobretudo como maestro: fez sucesso regendo as principais orquestras de Viena, Budapeste, Hamburgo, Amsterdam e Nova York. Suas composições foram apreciadas, em vida, apenas por breves momentos em algumas dessas cidades acima e, em outras, foram detestadas ou ignoradas. Os grupos de admiradores em Viena (incluindo o jovem Schoenberg), em Praga e em Amsterdam precisavam defendê-lo contra duras críticas: suas sinfonias seriam longas demais, estranhas, com melodias banais e orquestrações ruins, por vezes exageradas ao usar instrumentos como um martelo (na 6ª sinfonia) e um coral de centenas de pessoas (na 8ª). Ao longo do século XX a fama de Mahler foi crescendo graças a admiradores influentes, entre os quais se incluíram Schoenberg e seus alunos e seguidores, incluindo Theodor W. Adorno, filósofo que, quando jovem e sem rumos certos na vida, estudou composição em Viena. Em 1960, centenário de morte de Mahler, Adorno publicou um livro de mais de 100 páginas dedicado àquele compositor que ainda não era tão famoso assim: hoje em dia, após gravações de grandes maestros como Leonard Bernstein e outros nomes da geração seguinte à de Adorno2, Mahler é quase tão comum nas salas de concertos quanto Beethoven e Mozart.

Ao escrever sobre Mahler, Adorno mostra-se um crítico bastante cuidadoso, dedicado a observar a música por vários ângulos, o que não acontece por exemplo no seu livro anterior Filosofia da Nova Música (1949), dividido em uma introdução e dois capítulos – “Schoenberg e o progresso”, “Stravinsky e a restauração” – nos quais, como diz Bernstein no mesmo vídeo já citado acima3, Schoenberg é só beleza e Stravinsky é tudo de ruim. Na introdução do livro de 1949 (p.24), Adorno menciona Mahler brevemente para logo despachá-lo com uma acusação de “impotente sincretismo” que pretendia “usar à vontade” diferentes técnicas e procedimentos.4

Já no livro de 1960, Adorno entende que a relação de Mahler com os clichês mais vulgares da música “torna-se dialética” (p.17). Em um mundo objetivamente em ruínas, cada sinfonia de Mahler “parece buscar a possibilidade de construir uma totalidade viva a partir de um mundo musical reificado5” (p.39). Ou seja, para Adorno as melodias e momentos banais e a tendência ao kitsch não são defeitos na música de Mahler, pelo contrário: ele só se torna um grande compositor porque subverte o banal, buscando nele segredos sobre o nosso mundo. É o que aparece no trecho abaixo, ao mesmo tempo uma bela homenagem de Adorno às ideias de Walter Benjamin sobre a marcha da história:

“O elemento não domesticado no qual a música de Mahler emerge com cumplicidade é arcaico, ultrapassado. É uma música que não faz compromissos mas que se ligou a materiais tradicionais. Ela recorda, assim, as vítimas do progresso, mesmo as vítimas musicais: aqueles elementos da linguagem rejeitados pelo processo de racionalização e controle sobre o material. Naquela linguagem Mahler não queria encontrar a paz perturbada pelo curso do mundo; pelo contrário, fez uso dela com violência para resistir à violência: os miseráveis restos do triunfo acusam os triunfantes.” (Adorno: Mahler. Cap. 1, p.17. Trad. do inglês e do italiano)6

É um tipo de argumentação dialética e diferente dos clichês mais solidificados e disseminados sobre a obra de Adorno, frequentemente preocupada em espinafrar tudo que é popular como dejeto sujo da indústria cultural. Ao se referir a Mahler o filósofo de Frankfurt encontra aspectos positivos naquilo que é vulgar, kitsch e, por isso, mesmo, guarda um vigor imediato que a “alta música” há muito tempo já sacrificou em nome do bom gosto.

A grande qualidade de Mahler então, seria a ausência de vergonha em se utilizar dos “materiais musicais já humilhados e insultados (…). Se a banalidade é a essência da reificação musical, ela é ao mesmo tempo preservada e superada pela voz que improvisa e anima aquilo que havia sido transformado em coisa” na música de Mahler” (p.37).

Para Adorno, o tom de fábula em vários trechos das sinfonias de Mahler nos recorda a semelhança entre animais e humanos. Não sem semelhança com as fábulas de Kafka, prossegue Adorno, a música de Mahler toma um caminho oposto ao que a música de concerto europeia seguia até então: quanto mais a civilização dos séculos XVIII-XIX aprendia a dominar a natureza por meio da dominação e complexificação dos materiais sonoros, mais majestosas as sonoridades orquestrais se tornavam. Esse é o caminho das orquestrações de Mozart para Beethoven, depois Liszt, Brahms e Wagner, cada vez com orquestras maiores, ultrapassando os cem instrumentistas no fim do século XIX. A unidade das orquestrações, cuidadosamente trabalhada por cada compositor que se apoiava sobre os ombros dos gigantes anteriores,

“abolia a multiplicidade; o seu poder sugestivo bloqueava as distrações.” (p.9). Em Mahler, pelo contrário, assim como nos escritos de Nietzsche7 e Freud, “o “ego” musical, o “nós” que soa na sinfonia, se quebra.” (p.7)

“Na orquestra de Mahler, o balanço que ainda se mantinha em Wagner é perturbado pela primeira vez, apesar de todo o aumento de cores instrumentais em comparação com o classicismo [de Haydn e Mozart por exemplo]. A voz individual é enfatizada às custas do som do todo.” (p.52)

“Sua escrita sinfônica busca capturar as vozes desordenadas das coisas vivas […]. A natureza, como o oposto da dominação humana, é ela mesma distorcida enquanto for exposta à vontade e à violência. Mesmo quando a música de Mahler evoca a natureza e paisagens, em nenhum momento as apresenta como absolutos, mas as infere pelo contraste com aquilo de que elas desviam.” (p.14-15)

Apresentando sons de pássaros, mas sem acreditar na perfeita harmonia que, para outros compositores, essa natureza representaria, Mahler superaria, para Adorno, os elementos vulgares e banais justamente ao utilizá-los e subvertê-los por meios contraditórios. O que em outros compositores do romantismo tardio, como Tchaikovsky e Dvorák8, era involuntariamente vulgar torna-se em Mahler uma aliança provocativa com a música vulgar. “Suas sinfonias ostentam sem pudor o que todos os ouvidos conheciam, restos de grandes melodias, canções populares superficiais, baladas de rua, hits.” (p.35)

A partir desses personagens vulgares, Mahler cria relações tal qual um escritor em um romance. Como a Revolução Francesa fez em termos sociais, em termos musicais “a música baixa ascende à música alta. […] Livre como somente aqueles que não foram totalmente engolidos pela civilização”, Mahler coleta “vidros quebrados pelas ruas e os levanta em direção ao sol para refletirem todas as cores.” (p.35-36)

Esse elemento da vulgaridade – que Mahler utiliza para superá-la – não equivale à evocação de uma mãe-natureza intocada e superior, Mahler não constrói musicalmente uma natureza equivalente ao “elemental ou o mítico” (p.37). Pelo contrário, Adorno enxerga em Mahler a crítica radical à perfeita ordem de um sistema harmônico (no sentido musical) que corresponderia a uma sociedade supostamente harmônica (no sentido de ausência de contradições e lutas internas):

“Desde Kant e Beethoven, a música e a filosofia alemãs formavam um sistema único. O que elas não conseguiam assimilar se refugiava na literatura […]. Em contraste, a originalidade da música de Mahler corresponde à intuição de Nietzsche de que o sistema e sua perfeita unidade, sua aparência de reconciliação, era desonesta.” (p.64)

Em oposição à unidade das grandes sinfonias e outras obras orquestrais da tradição alemã de Beethoven-Brahms-Wagner, Mahler seria a personificação do acirramento de contradições no seu tempo histórico.

“Inimiga de toda ilusão, a música de Mahler mostra a sua falta de autenticidade, sublinha a ficção inerente, de modo a se curar da falsidade real que a arte estava se tornando.” (p.30)

O fato de que Mahler, além de compositor, era também maestro de orquestras de alto nível não passa despercebido para Adorno. Pois para Mahler a composição era quase um hobby, uma atividade de prazer, enquanto reger orquestras em Viena (mas também Amsterdam e Nova York) era o que pagava as contas do mês.

Qualquer imbecil consegue detectar na sua música traços da música de um maestro9, imitações de coisas familiares nas novas composições […]. O maestro como compositor tem um ouvido não só para o som mas para as práticas da orquestra, para as capacidades dos instrumentos e suas forças, fraquezas, exageros e monotonias que podem ser usadas para os seus propósitos. […] Isso torna as suas obras menos literais, como se fossem como são simplesmente por sua natureza. Que Mahler fosse ao mesmo tempo parte da cultura musical e um mestre saturado com o idioma do seu tempo, e no entanto separado dela, produz a atmosfera especial da sua linguagem. Ela é ao mesmo tempo coloquial e a de um estranho. Sua estranheza é enfatizada pelo elemento exageradamente familiar. (p.30-31)

E aqui podemos voltar a falar de outro maestro, o norte-americano Lenny Bernstein. Assim como Mahler, ele era ao mesmo tempo um compositor relativamente independente, escrevendo música em sua torre de marfim, e um maestro preocupado em agradar e tocar um número grande de pessoas e não apenas um grupo selecionado de admiradores. Bernstein fez isso compondo para musicais da Broadway em Nova York – do qual o mais famoso é West Side Story – e também dominando a linguagem televisiva em dezenas de programas entre as décadas de 1960 e 1980. Sem tratar a audiência como estúpidos, mas ao mesmo tempo buscando usar palavras de fácil entendimento, Bernstein fazia a ponte entre ideias complexas e as “massas” de maneira verdadeiramente única.

Já para Mahler, além da regência de orquestra, com a qual ele obteve grande sucesso, o outro caminho era a integração do elemento popular na sinfonia e na canção com acompanhamento orquestral (lieder em alemão):

Como muitos disseram – e ele mesmo talvez tenha dito – ele [Mahler] cultivava a noção rebelde de uma ponte entre o popular e a música artística. Ele tinha esperança em uma audição coletiva, sem estar disposto a sacrificar para isso nenhum grau de complexidade ou negar o nível da sua consciência. […] Mas essa necessidade não era satisfeita nem por uma música popular afundada em vulgaridade nem por toda a avançada música artística de sua era. (p.31)

Essa reconciliação entre as músicas popular e de concerto, como qualquer reconciliação para Adorno, era impossível no presente, deixando-se vislumbrar apenas como uma esperança distante. A qualidade da música de Mahler, então, não seria a de alguém que traz a felicidade imaculada. Pelo contrário:

“Ela se eleva quanto mais ela se fundamenta na contraditoriedade do mundo, que também marca o sujeito. Ela se torna mais do que meramente contraditória quando, por síntese estética, ela transforma suas tensões internas na imagem de uma unidade realmente alcançável. Não é como se Mahler a pessoa, ou mesmo o sujeito imanente em suas composições, fosse livre de conflitos. O tom traumático na música de Mahler, um momento subjetivo de desespero, não é escondido, e permitiu que ele guardasse distância da ideologia de mens sana in corpore sano.” (p.24)10

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3) A dialética (espírito de contradição)

Para finalizar, amarro aqui nesta seção – de maneira apressada e apenas tateando o assunto – certas conclusões sobre o interesse das contradições observadas na arte e na vida dos dois Maestros. Chegaremos então, pelo pior caminho possível, ao conceito filosófico de dialética: com uma definição sintética e típica de dicionários.11 Segundo Hegel citado por Goethe citado por Eckermann, a dialética “nada mais é do que o espírito da contradição organizado e metodicamente cultivado, que habita cada homem”.

Outra definição da dialética: ninguém se banha duas vezes no mesmo rio. Da segunda vez, eu sou outro e as águas do rio são outras. Atribuída a Heráclito por vários autores da antiguidade greco-romana como Platão e Plutarco, essa definição não pode ser conferida no livro original de Heráclito, pois este foi perdido na noite dos séculos. Aristóteles e outros autores gregos e romanos chamavam Heráclito de “obscuro” por seu estilo de escrita complexo e passível de interpretações diferentes a depender do leitor.12 Nisso, Heráclito se aproxima de Hegel, outro autor de leitura relativamente obscura. Nos seus escritos, Hegel define a dialética como um processo, como um movimento dos conceitos e por aí vai, nunca com uma definição sucinta e fechada.

Até por ser mais típica de um poeta como Goethe do que do obscuro Hegel, a frase sobre o “espírito da contradição organizado” deve ter sido cunhada pela memória do poeta após conversar por horas a fio com o filósofo. Não sou especialista em Hegel, mas conheço um pouco sobre esses disse-me-disse de frases de gente famosa, então deve ter sido assim: Hegel falou à sua maneira prolixa e difícil13 e Goethe resumiu em palavras de poeta, que depois Eckermann anotou e publicou.

Em todo caso, tanto na imagem do rio no qual não nos banhamos duas vezes – o que remete ao fluxo caótico das águas, bem diferentes de uma piscina fixa e previsivelmente monótona – como na definição do espírito da contradição, o movimento da dialética nos permite aqui um salto desde os tempos de Mahler (início do século XX) até assuntos que parecem muito típicos dos nossos tempos – e, como recorda o crítico da Time, a vida de Bernstein como retratada no filme tem aspectos que ainda hoje podem chocar não só os conservadores mais comuns mas também os, digamos, caretas com bandeira de arco-íris.

Herdeiro e crítico de uma tradição filosófica alemã que representava, no final das contas, a soberania do sujeito pensante e a “ideologia de que o não-eu e tudo que evoca a natureza é inferior”, tradição idealista para a qual a unidade lógica do eu corresponde a um círculo fechado onde “a diversidade aparece sempre como inconsequente” (Dialética Negativa, na boa tradução de M. A. Casanova), Adorno nos dá pistas, hoje, para pensarmos essa ideia de diversidade muito além dos clichês de comercial de refrigerante e de banco. No livro escrito com Horkheimer durante a 2ª Guerra, Adorno mostra que aquele pensamento esclarecido europeu, em termos históricos, andava junto com a dominação da natureza e a “coisificação do espírito”, um projeto em suma patriarcal de investir os homens “na posição de senhores” (Dialética do Esclarecimento, na excelente tradução de Guido Almeida).

A contradição e qualquer passo fora da linha da lógica formal, para esse tipo de pensamento, correspondem ao caos e à anarquia, pesadelo de qualquer conservador. E o movimento da contradição (ou seja, dialética) corresponde à lembrança constante de que a liberdade, por enquanto, é real apenas enquanto esperança. E por isso, também na música e nas outras artes, a resistência à opressão é uma tarefa constante.14

No seu ensaio de 1961 intitulado “Vers une musique informelle”, expressão em francês que significa “rumo a uma música informal”, Adorno explica que escolheu esse título em francês como homenagem e gratidão ao país onde as vanguardas artísticas tiveram a coragem de produzir manifestos. Fugindo do seu estilo mais habitual de escrita, Adorno finalmente defende uma plataforma para a música do futuro, desde que essa plataforma seja colocada suficientemente distante e acompanhada de crítica constante no percurso até o ponto de chegada:

“Musique informelle” resiste à definição nos termos botânicos dos positivistas. Se há uma tendência que a palavra serve para apontar, é aquela que ri de qualquer tentativa de definição, assim como Nietzsche, aliás uma autoridade não tão ruim em assuntos musicais, uma vez apontou que todo fenômeno histórico foge as tentativas semióticas de definição.” (Adorno: Vers une musique informelle)

Mas – retornando ao seu estilo habitual – Adorno afirma que a “música informal” seria, em suma “a imagem da liberdade”, o que equivale a dizer que ainda não é possível fazer uma descrição completa dela em um mundo não livre. “É melhor admitir” essa impossibilidade de se definir o que é a música livre, diz Adorno, do que escolher um tipo ou outro de música já existente hoje e afirmar que ele encarna esse “ideal musical terrivelmente positivo.”

Para concluir, repito aqui a frase que aparece em letras brancas sobre fundo preto no início do filme Maestro:

“Uma obra de arte não responde a questões, ela provoca questões; e seu significado essencial está na tensão entre as respostas contraditórias.” (Leonard Bernstein)

P.S. Esta é a primeira de uma série de notas relacionadas às ideias de Adorno sobre as contradições do mundo moderno e o próprio conceito de contradição neste mundo moderno. O autor dessas notas despreza sobretudo a versão simplificada e burra de certos estudos sobre indústria cultural, segundo os quais ontem houve arte que não era mercadoria e hoje há apenas mercadoria que não é arte.

Bibliografia Principal:

Adorno, T.: Mahler. Frankfurt, 1960. Disponível aqui em inglês e aqui em italiano.

Adorno, T.: Vers une musique informelle. In: Quasi una fantasia. Frankfurt, 1963. Disponível em inglês aqui.

Bernstein, L.: Aula na Universidade de Harvard em 1973. Disponível em texto aqui (livro) ou aqui (transcrição) e em vídeo aqui

Notas de Rodapé:

  1. O escritor e melômano gaúcho Milton Ribeiro, por exemplo: “OK, a maioria dos regentes não nasceu para reger Mahler como Leonard Bernstein parece ter nascido. Agora, a comparação da tranquilidade de dele com o verdadeiro desespero ou excesso de zelo e preocupação de alguns é de chocar.” Milton Ribeiro sobre o filme Maestro: “Curiosamente, a personagem principal é Felicia, a muito interessante esposa que fazia de conta que não via nada, pero não era bem assim. Sugiro aos jovens verem Bernstein falando ao vivo no YouTube. Ele era muito mais sedutor e charmoso do que o personagem de Bradley Cooper. O filme Maestro é… Felicia.” ↩︎
  2. Além de Leonard Bernstein, a geração que tornou Mahler um nome extremamente popular nas salas de concerto contou com maestros como Bernard Haitink (1929-2021), Pierre Boulez (1925-2016) e Václav Neumann (1920-1995). Todos esses foram especialistas em Mahler. ↩︎
  3. A partir dos 26m30s no mesmo vídeo já linkado: “I have recently been reading a fascinating, nasty, turgid book called the ‘Philosophy of Modern Music’ by the German sociologist and aesthetician Theodor Adorno… It’s curious that a book with this title should turn out to be a double essay on precisely Schoenberg and Stravinsky, thus reducing ” modern music” to that specific dichotomy. […] Schoenberg is all truth and beauty, while Stravinsky is everything evil. But Adorno confirms what I’ ve been saying by pointing out, in his Hegelian way, that the Big Split is to be conceived dialectically, or, to use his language, as logical antinomies of the same cultural crisis.”
    Ou seja, argumento aqui que Filosofia da Nova Música (1949) é um momento de menor sofisticação, superado posteriormente pelo pensamento de Adorno. Foi o seu 1º livro traduzido em português, mas não chega aos pés dos livros Quasi una fantasia (Ed. UNESP, 2007) e Mahler (1960, sem tradução em português). ↩︎
  4. Anos depois, o conceito de ecletismo (não igual mas similar ao de sincretismo) vai ser reabilitado por Adorno – se o senso comum acusa algumas coisas de ecléticas, isso teria mais a ver com uma série de ideias tortas do senso comum.
    Adorno escreveu em 1959: “O termo pejorativo ‘eclético’ [representa] o extremo de uma concepção (…). De acordo com o senso comum, a personalidade nunca se fixa em algo específico, mas se expande de maneira natural, orgânica, para uma totalidade abrangente e harmoniosa. (…) Mas a realidade não é bem assim. A produtividade do artista nunca se alinha perfeitamente à sua subjetividade particular, ao contrário da crença na noção de gênio. Os traços mais individualistas são, no fundo, configurações de uma coletividade; de maneira inversa, marcas históricas de uma coletividade se inscrevem em idiossincrasias. Em Mahler, principalmente, traços ecléticos convivem com a mais intensa originalidade; em sua obra, esses traços são preservados, sem que a originalidade absorvesse o ecletismo, ao contrário do que certa sabedoria convencional, que ele tanto desprezava, recomendaria.” (Adorno: Quasi una fantasia. Trad. E. Socha, p.179) ↩︎
  5. O conceito de reificação, do latim “res”, coisa, significa a transformação das relações sociais e, enfim, de tudo, em coisas disponíveis para compra e venda no mercado. Uma palavra que soa melhor e menos pomposa em português e línguas latinas seria “coisificação”, usada na sua versão francesa pelo grande poeta Aimé Césaire: “Uma equação: colonização = coisificação” [colonisation = chosification] (Discurso sobre o colonialismo, Césaire, 1955). ↩︎
  6. Todas as citações de páginas, nesta seção 2, referem-se a Mahler: A Musical Physiognomy, tradução de 1992 do livro publicado em alemão por Adorno em 1960. Não há tradução em português. As traduções são todas minhas, indiretas a partir do inglês e comparadas com as edições em italiano e em alemão. ↩︎
  7. Mahler, quando jovem, foi um atento leitor de Nietzsche. Quando este morreu (1900), o compositor tinha 40 anos. ↩︎
  8. Ao afirmar que o russo P. Tchaikovsky (1840 – 1893) e o checo A. Dvořák (1841 – 1904) utilizavam melodias populares e nacionalistas de maneira “involuntariamente vulgar” (p.35), Adorno acaba repetindo um de seus procedimentos mais duvidosos: o de achar que tudo que não lhe agrada é simples, banal, linear, estúpido, enquanto naquilo que lhe agrada e aquilo que ele compreende com mais profundidade (que, no caso da música, são quase sempre austríacos ou alemães) ele sempre encontra os elementos negativos (a vulgaridade de Mahler, aqui, ou o caráter de mercadoria da música de Beethoven) em um par dialético de enorme sutileza. ↩︎
  9. A palavra maestro, para alguns, seria um título de honra, enquanto a denominação mais correta da profissão de quem conduz uma orquestra seria regente ou condutor. Mas vou manter, nas traduções de Adorno, a palavra “maestro” que venho usando até aqui e que, em português, é amplamente associada à profissão, para o desprezo de alguns puristas. ↩︎
  10. Ao fazer referência à frase latina “mente sã em corpo são”, que vem desde a Roma do século 2 D.C. mas havia sido mais recentemente incorporada pelo nazi-fascismo, Adorno faz alusão provavelmente a esses regimes que, aliás, já condenariam a música de Mahler de qualquer jeito, por causa da origem judaica do compositor. ↩︎
  11. Esse tipo de definição simples, sólida e perene é o oposto do pensamento dialético. Em seus Três Estudos sobre Hegel, Adorno escreveu que “a filosofia não pode procurar seu objeto nos conceitos universais supremos, … em razão de sua suposta eternidade e atemporalidade.” (p.112). Conferir também a introdução do mesmo livro por V. Safatle: “um conceito filosófico não é uma definição nominal digna de figurar em dicionários, mas é a descrição de um processo, temporalmente estendido, de organização da experiência.” ↩︎
  12. “É uma dificuldade pontuar as frases de Heráclito porque não é claro a que termo uma palavra se refere, se ao que a precede ou se ao que a segue.” (Aristóteles: Retórica) ↩︎
  13. Essa prolixidade e dificuldade não devem ser confundidas com o jeito pedante de alguém que enrola e não quer ser compreendido. Abordar os assuntos conceitualmente densos com calma e sem pressa indica sobretudo um respeito pelos conceitos e pelos interlocutores, que merecem uma resposta séria ao invés de um resumo de manual. ↩︎
  14. “A liberdade é real em Beethoven apenas enquanto esperança.” “Sua obra faz explodir o esquema de uma adequação dócil entre música e sociedade” – escreveu Adorno sobre Beethoven em fragmentos para um livro jamais finalizado sobre este compositor. (Fragmentos de 1940 e 1962, trad. do francês: Beethoven – Philosophie de la Musique, Paris, 2021) ↩︎

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